Enquanto tudo vai bem, o corpo em forma, os exames impecáveis e a pele brilhando de saúde, o sujeito se sente quase um semideus. Ri dos céus, questiona o invisível, e garante com firmeza: “Sou ateu, convicto!”. Afinal, é fácil filosofar quando não há dor, nem febre, nem resultado de biópsia esperando no consultório.
Mas basta um mal-estar mais insistente, uma pontada suspeita ou uma noite mal dormida com calafrios e suores frios, que o discurso muda ligeiramente. A racionalidade é substituída por uma nervosa olhada no a vasculhar os sintomas. E, antes que percebamos, lá estamos nós, numa conversa interna com quem alguns de nós diziam que não existia:
– Olha, se eu melhorar dessa, prometo rever mundos e fundos.
Nessas horas, até o mais cético começa a negociar com o universo, fazer promessas, agradecer por pequenas melhoras e suspeitar que talvez, só talvez, haja algo além da bioquímica. Nada como um pouco de febre para reaquecer a fé momentânea que estava guardada num móvel obscuro das crenças engavetadas.
Ao fim e ao cabo, o verdadeiro teste de convicção filosófica talvez seja menos metafísico e mais fisiológico. Porque uma coisa é debater nosso suposto ateísmo num café — outra é tossirmos a noite toda, desconfiados: