(Continuação)
Porém, alguma coisa deu errado. Cunhamos material e idealmente uma civilização sofisticadíssima, fruto da nossa incrível habilidade inventiva, capaz de reproduzir o paraíso e, daqui a uns poucos pares de anos, a imortalidade biológica e, no entanto, toda esta sofisticação não produz paz, compaixão, tolerância, amor ou felicidade.
Numa residência qualquer do sul do mundo, temos uma sofisticada televisão digital, o DVD, confortável mobiliário confeccionado numa textura e densidade para nos dar a sensação de estarmos sentados ao lado direito do Criador, aromas refinados extraídos da comidinha saída do micro-ondas, e nossos filhos saudáveis, nutridos e educados comunicam-se com o mundo pela Internet num smartphone. Enquanto isso, o dono da casa vê, no jornal do dia, as fotos premiadas do ano: a primeira é a de um pai africano segurando um filho nos braços, morrendo de AIDS, e a outra foto ganhadora é de uma mulher síria consolando uma outra, que chora desesperada diante da morte dos seus entes amados.
Em algum shopping, uma mulher apressada, depois de almoçar, ao invés de distribuir os restos do seu banquete no lixo seletivo, rapidamente despeja os resíduos no lixo único, pois tem pressa, muita pressa. Não tem tempo para fazer seu pequeno gesto diário de amor e apreço pela sua grande mãe: a Terra.
Em nenhuma outra época morreu-se tanto do coração. Nunca se matou tão gratuitamente. Não houve antes tanta abundância alimentar e, no entanto, milhões morrendo de fome. São tantas as espécies desaparecendo nestes nossos tempos… E, apesar de haver centenas de religiões, jamais antes tantos se sentiram tão sem fé.
Aquele senhor, que lê o jornal e partilha sua existência há muitos anos com sua parceira, já não tira mais os olhos das notícias para ouvi-la, e nem ela acha que merece atenção. São dois estranhos, partilhando uma vida sem sonhos em comum, com pouco tesão e muita conta para pagar.
Nunca tantos estiveram tão sós. Essa solidão é facilmente identificável aos domingos, ao crepúsculo, quando uma estranha melancolia se apossa de todos. A cidade guarda seus milhares de isolados habitantes em pequenos apartamentos e, silenciosa, faz ressoar o programa clássico das famílias. Nada mais deprimente, solitário e vazio.
(Continua na semana que vem)